21 de agosto de 2012

Recomeço



Recomeço.

Pego na flor de linho como se fosse um pequeno pedaço de céu, e sacio-me na sua vontade de ser, manto ou véu, o mais fino pano sob o manjar dos deuses.
Olho-me para dentro, seguro firmemente nas pontas desfiadas dos dias iguais, detenho-me nos nós lenhosos e nos sarilhos do fio, e recomeço, de lágrimas pregadas na saia e de fuso na mão, sem medo de picar os dedos, fiando e bordando o tanto que me falta.

Para me amparar dos cansaços, trago o pólen colhido no silêncio das serras, no canto dos rios mansos, no gemido da terra quente, na resina viva das raízes levantadas ao vento e na festa louca das cigarras. Dentro do meu tear serei colmeia, onde as palavras se adoçam, as feridas sempre saram, e a luz não desiste de enxergar melhor o mundo.

Recomeço.

Entrego aos deuses os meus gestos pequenos, de mãos a crescerem no amor das abelhas, retalhos de  paisagem cravada na alma. Só eles sabem o que em mim valerá a pena, um dia, fazer-se poema.


11 comentários:

Rosa Carioca disse...

Eu sei que sempre me repito mas... o que posso dizer?
Adoro ler os seus textos!

Rogério G.V. Pereira disse...

Sabes poeta
que sempre me acode falar
e pensar
num recomeço qualquer
E desisto
Talvez tenhas tu razão
em afastar gente da tua frente
do teu lado e nem sequer a ver
na moldura da janela.
Passo a contar apenas, à tua imagem,
Com os retalhos da paisagem...

Não estou seguro de ser um recomeçar
Mas vou tentar

A.S. disse...

És a colmeia onde as palavras de adoçam,
onde as abelhas se esmeram na simetria dos favos,
onde as fragrâncias enebriam os sentidos,
onde o mel é seiva libertadora,
onde me sinto abelha!...

BELISSIMO TEXTO MARIA JOÃO!!!

Um abraço,
AL

Lídia Borges disse...


Lendo como quem bebe só me ocorre uma afirmação:

«Recomeça... se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade.»
Miguel Torga

Um beijo

Fá menor disse...

Toda a vida será um poema, se vivida assim em "pequenos detalhes", tão doces, ainda que sofridos.

Obrigada, Maria João, é muito bom ler-te.

Bjinhos

Mar Arável disse...

Um texto imenso

com palavras em relevo

Belíssimo

Professora Lu disse...

Como sempre um arraso!
Gosto demais da tua sensibilidade e da maneira que usa as palavras para exprimir os sentimentos reclusos que querem se libertar!
Parabéns!

AC disse...

Há saberes de raiz profunda, que passam por nós de forma delicada, quase despercebida. E, no entanto, são eles o garante da perpetuação da luz, por ínfima que seja. Há-de chegar o dia em que o sol lhes fará a devida honra.

Beijo :)

Mel de Carvalho disse...

... há uma estrada que só as almas genuinamente atentas conhecem.
há uma esquina do tempo, um recomeço, nunca igual e sempre possível, que aprimora a vida, a suaviza, a adoça e humaniza,
e,
a mestria dos desuses, face à escolha do que, de cada um de nós, remanescerá, poema...
...

recomeço, hoje, aqui, as leituras que me acrescem.

Beijo e saudades, minha amiga. obrigada, Joãozinha, obrigada...

Mel

Bergilde disse...

Reflexões profundas que comunicam sentimentos intensos de alguém que consegue capturar cada pequena nuance do verbo complexo e ao mesmo tempo simples chamado Amar.
Abraços,

Virgínia do Carmo disse...

Não há recomeços que me bastem para reorganizar as palavras que te hão-de dizer o quanto tu me disseste hoje. Comoves-me sempre.

Um beijo enorme de saudade, querida João